Sem ousadia não há bom tradutor

Boris Schnaiderman
(1917-2016)

Entrevista a Marlova Aseff


Publicada originalmente no Diário Catarinense, 27/03/2004.

Boris Schnaiderman é a prova viva do tanto que um homem pode contribuir para a cultura de um país. Reconhecido como o grande intérprete da cultura russa no Brasil, devemos a ele o privilégio de ler o melhor dessa literatura em traduções feitas diretamente do original (e não mais através de línguas intermediárias). Ensaísta produtivo e professor, foi o responsável pela criação do curso de língua e literatura russa da Universidade de São Paulo (USP), no qual participou da formação de uma geração de tradutores. Ajudou a divulgar entre nós poetas como Púchkin e Maiakóvski, cujos poemas traduziu em parceria com os irmãos Augusto e Haroldo de Campos. Para ele, seu ofício é sinônimo de coragem e ousadia: “Sem ousadia não há bom tradutor”, diz.

Nascido na Ucrânia, no ano da revolução bolchevique, ainda criança ele aportou no Brasil. Hoje, chegando aos 87 anos, Schnaiderman continua em plena produção. Deve lançar em breve o livro
Tradução, ato desmedido (editora Perspectiva) e está revisando sua tradução de O Jogador, de Dostoiévski, que será relançada com o título de Um Jogador. Seu relato autobiográfico Guerra em surdina também terá nova edição este ano. Sua vida de trabalho intelectual foi reconhecida, no ano passado, pela Academia Brasileira de Letras com o recém-criado Prêmio de Tradução. Durante sua visita a Florianópolis, onde veio proferir a aula inaugural do curso de Pós-Graduação em Estudos da Tradução na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), concedeu a seguinte entrevista:

O senhor nasceu justamente no ano da revolução bolchevique, fato que afetou seu destino...

Sim, nasci em 1917 numa cidade pequena da Ucrânia. Pouco após a revolução, quando eu tinha mais ou menos um ano, meus pais me levaram para Odessa porque era o período das grandes matanças de judeus que ocorreram na Ucrânia. Vivi minha primeira infância em Odessa e vim para o Brasil aos oito anos com meus pais.


Como o senhor avalia as conseqüências desse período para a cultura russa?

Houve essa coisa horrível que foi a opressão, que se fez sentir alguns anos após a revolução. Nos anos imediatamente após a revolução, havia uma certa soltura, não havia tanta repressão. Claro que eles se preocupavam com atividades contra-revolucionárias, houve fuzilamentos. Um poeta importante como Nicolai Gumilióv foi fuzilado. Mas, de um modo geral, o clima não era tão opressivo como a partir de 1929-1930, com a ascensão de Stálin. Para a cultura, foi terrível. Era proibido, por exemplo, escrever um romance que não se enquadrasse nas normas da literatura do século 19. A poesia tinha que ser aquela mais tradicional... A prevenção contra as vanguardas já existia desde os primeiros tempos da revolução. Houve essa contradição de que os dirigentes tinham um gosto muito arcaico. Eram pessoas cultas, polidas, mas muito direcionadas para a política. Alguns, como o comissário de instrução pública, uma espécie de ministro da educação, era um homem muito culto e que no início, pelo menos, mostrou uma abertura muito grande para o desenvolvimento cultural, mesmo de correntes que eram contrárias ao que ele fazia. Depois é que as coisas foram piorando. Mas está errado pensar que não se produziu coisas de valor na época. Esses tempos eu fiz uma palestra em Fortaleza e um escritor me perguntou como, na Rússia, foi possível que aquela grande literatura do século 19 simplesmente desaparecesse. Estava errada a opinião que ele tinha. Um escritor como Isaac Bábel, apesar de ter produzido pouco, é um escritor de primeira. Ernest Hemingway o admirava e dizia que sentia inveja da concisão de sua escrita. Logo Hemingway, que era tão direto, sempre apontado como modelo de escritor conciso.


Quantas vezes o senhor retornou à Rússia?

O primeiro retorno foi em 1965, já como professor da USP. Antes disso, era difícil de voltar porque eu era cidadão soviético (estava naturalizado brasileiro, mas tinha passaporte soviético). Nossa família havia saído legalmente, então eu era mais ou menos um renegado: alguém que tem passaporte e não se liga à pátria. Mas, depois de 1965, eu retornei várias vezes.

E o senhor vê identidades entre a Rússia de hoje e o Brasil?

Há em comum a má distribuição de renda, o subdesenvolvimento, enfim, as coisas piores.


Mas é verdade que os russos também têm a “cultura do jeitinho”?

É, têm sim. Nos anos que se seguiram à revolução, era típico: cada um costumava dar o seu “jeitinho”. Isso a gente pode ver na literatura da época. Acontece o seguinte: a literatura russa anterior a esse fechamento era forte. Está errado dizer que havia desaparecido totalmente. Era a época do Maiakóvski, do Bóris Pasternak. Havia grandes escritores que estavam produzindo coisas boas. Mas o que me surpreendeu muito foi que depois da Glasnost apareceu tanta coisa, uma riqueza de textos. Foi incrível.


É o que o senhor trata no livro de ensaios Os escombros e o mito, não?

Sim, a finalidade desse livro é justamente toda essa cultura muito rica que ficou escondida, guardada nas gavetas. E era perigosíssimo. Há aquela frase famosa de um poeta russo dizendo que a Rússia era um país onde a poesia tinha um peso muito grande, tanto que era o único lugar no qual se fuzilava por causa de um verso. Tanto é verdade que ele morreu vítima da repressão por causa de um poema.

Dos grandes escritores russos que o senhor traduziu, como Tolstói, Tchekhov, Dostoiévski, Púchkin, Górki, etc, quais o que mais gosta?

É difícil dizer porque eu só traduzo textos que me tocam de perto. Claro que há maiores e menores. Por exemplo, Górki eu não colocaria no mesmo plano de Tolstói e Dostoiévski. No entanto, tenho afinidade, gosto de muita coisa do Górki. Eu não saberia dizer se admiro mais Tolstói ou Dostoiévski. Eu não diria que um é maior do que o outro, é uma discussão meio boba.


O senhor disse certa vez que é preciso coragem para traduzir Dostoiévski...

Mas ao mesmo tempo é preciso ousar. Uma tarefa assim não deve assustar, deve estimular a pegar o texto e ir em frente, trabalhar. Se eu fizer um trabalho imperfeito, depois virá alguém que o fará melhor. Sem ousadia não há bom tradutor.


Qual é o nível da literatura russa contemporânea?

Não tenho condições de julgar. Eu conheço algumas obras bem interessantes. Recentemente tive uma surpresa com um romance que apareceu e que havia sido escrito em um período que não se podia publicar certas coisas. O romance se chama Verão em Baden-Baden, de Leonid Tsipkin, e foi lançado recentemente pela Companhia das Letras.

No que o senhor está trabalhando no momento?

Preciso acabar de revisar uma tradução minha de Um Jogador, de Dostoiévski. Eu prefiro “um jogador” e não “o jogador”, título que já se consagrou. O motivo eu vou explicar no prefácio ou em uma nota do livro. Mas estou mais envolvido neste momento em um livro sobre tradução, que vai se chamar Tradução, ato desmedido, e será lançado pela editora Perspectiva. Nesse livro, defendo a posição, que até anos atrás era considerada ousada demais, de que o tradutor, na verdade, é co-autor da obra na língua de chegada. De vez em quando também escrevo artigos.


O senhor comentou de um dilema que já viveu como tradutor: o risco de a tradução ficar ora muito “endomingada”, ora muito “prosaica”. Como encontrar o tom certo?

Aí é que está a arte. A tradução é uma arte! Não adianta traduzir uma obra que é solta, numa linguagem simples, e colocar adjetivos, torná-la mais solene.

Como foi a sua experiência de traduzir junto aos irmãos Campos?

Foi uma experiência muito rica, eu aprendi muito. Eu os conheci em 1961, quando eles foram à minha casa com o Décio Pignatari. Eu havia publicado um artigo sobre Maiakóvski e eles se interessaram. Nós nos reuníamos para traduzir, eu fazia a primeira tradução e sugeria alguns procedimentos. Em cima disso, eles trabalhavam. Depois de pronto o poema, eles me mostravam. Isso na maioria dos casos, pois eles também traduziam do francês e do inglês e me davam para eu confrontar com o texto em russo.


Há algum autor que o senhor não traduziu ainda, mas gostaria?

Sim, vários. Eu citaria Daniel Kharms, que produziu uma obra de literatura do absurdo. Inclusive ele tem uma peça de teatro do absurdo. Ele começou a aparecer na segunda metade da década de 20. Era conhecido como autor de livros para crianças, de histórias estapafúrdias que as crianças gostam e que eram o seu ganha-pão. Depois, em seu diário, ele confessou que detestava crianças. Foi um precursor de Samuel Beckett e de Ionesco. Na segunda metade da década de 20, havia um grupo de Leningrado que fazia esse tipo de literatura. Era o grupo Oberiúti. E Kharms era, para mim, o mais importante destes autores que narravam o absurdo que surgia naturalmente da vida russa.

Direitos reservados, 2004.
Reproduzida com autorização do entrevistado e da entrevistadora.
Imagens : Escritório do Livro


| TEXTO DE BORIS SCHNAIDERMAN SOBRE TRADUÇÃO |