A fogueira de livros

Salim Miguel  &  Eglê Malheiros


Excerto de Memória de Editor
(Florianópolis: Escritório do Livro / IOESC, 2002).

Salim
Outra experiência minha foi como livreiro, a partir do início dos anos 50. Era a Livraria Anita Garibaldi e meu sócio era Armando Carreirão que foi, em 57, produtor do filme O Preço da ilusão. Começou como banca de jornais, num café muito famoso na época, o Café Rio Branco, na Felipe Schmidt. Depois conseguimos um ponto maior, quase na esquina da Praça xv com a Conselheiro Mafra, onde continuamos com jornais e revistas, mas passamos principalmente a vender livros. Livros que as outras livrarias quase não vendiam, livros mais da esquerda ou diretamente ligados ao Partido Comunista, e livros importados. Tínhamos, pela primeira vez em Florianópolis, uma livraria que vendia livros das principais editoras argentinas, da Fondo de Cultura Económica do México, de editoras francesas e espanholas.

A livraria tornou-se ponto de encontro de jornalistas, escritores, de políticos, de gente que gostava de ler e discutir. Mas, em 59, chegamos à conclusão de que já não tínhamos como mantê-la. Foi o Carreirão quem se deu conta de que estávamos vendendo menos — deste menos, boa parte quem estava comprando era eu, que não pagava — e acabou dizendo: “Não temos como continuar. Eu, pelo menos, não quero continuar. Em lugar de tirar alguma coisa, estou pagando”.

Resolvemos nos desfazer da livraria. Ninguém a queria, também não sei se a teríamos cedido para outra pessoa, mas acabamos passando-a para o Cláudio, que era dirigente do PC aqui, sem receber praticamente nada e com direito a ficar com os livros ainda por algum tempo.

Todo o mundo continuava freqüentando a livraria, comprando, encomendando livros. Não que ela tivesse crescido, mas continuava muito movimentada.

Em 64, no dia seis ou sete de abril, ela foi arrombada, num finzinho de tarde, quando já estava fechada por medida de segurança. Os livros foram jogados entre a Conselheiro Mafra e a Praça xv. Alguns livros de Arte, livros mais importantes, foram devidamente carregados pelos que iam queimar os demais. Foi feita uma fogueira, a famosa fogueira de livros de Florianópolis.

Eglê
A polícia ficou por perto, impedindo quem não estava participando de se aproximar.

Salim
Os que estavam queimando (era uma meia dúzia) chamavam as pessoas para ajudar na queima, para dar volume de gente. Isso foi logo depois do golpe, eu já estava preso. Fui preso no dia dois, a fogueira foi em seis ou sete de abril.

Então fiquei sabendo dessa história. Chegou um novo preso, e quando chegava um novo preso todo o mundo avançava para cima dele para saber das novidades de fora. Mas eu estava lendo, estava empolgado com a leitura e não fui. De repente, alguém grita: “Salim, vem cá, tem uma coisa que te interessa. Estamos falando da queima da Livraria”. Foi assim que fiquei sabendo que a Livraria tinha sido queimada. E não foi “vamos queimar a Livraria Anita Garibaldi”, foi “vamos queimar a Livraria do Salim”. Embora há cinco anos não fosse mais minha, continuava sendo chamada de Livraria do Salim. Para falar a verdade, eu passava nela boa parte do tempo.

Eglê
Eu vi os livros reduzidos a cinza ali. Soube à noite, pois naquela época ninguém tinha telefone. Saí para ir ao Palácio, para saber se tinha alguma notícia sobre o Salim, alguma informação. Fui de ônibus, o ônibus parava ali na Praça Fernando Machado (nós morávamos na Agronômica). Então vi aquela barbaridade, a porta arrombada. Perguntei para alguém o que era, o que tinha acontecido, e fui até o Palácio falar com o Fúlvio Vieira. Naquele momento chegou também o Padre Braun, do Colégio Catarinense, que não sabia quem eu era. Foi então que ele disse: “Meu Deus, será que vamos voltar ao tempo do Hitler?”.

Foi obra de uma turminha que vinha formando um comitê, um grupo, sei lá, já preparando o golpe.


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