A folha de rosto

(ou rosto, frontispício, portada, página de rosto)

Breves notas históricas

Dorothée de Bruchard

Disse Stanley Morison que a história do livro impresso é, em boa parte, a história da folha de rosto. | Cf. Araújo, 1986, p. 432 |
E de fato, da segunda metade do século XVI, cerca de um século após a invenção da imprensa, é que datam as primeiras páginas de rosto completas — com título, nome do autor, ano da edição, dados do impressor. E nelas se concentram e revelam desde então os diferentes aspectos do livro e sua evolução ao longo do tempo: tipografia e ilustração em seus estilos e técnicas, o negócio editorial em suas práticas e estratégias, a noção de autoria e o reconhecimento dos vários ofícios envolvidos, as relações de troca e de força estabelecidos em torno do texto escrito...

A pouca importância atribuída pela Antiguidade ao título ou nome do autor se perpetuara ao longo da Idade Média, de modo que nas belíssimas páginas iniciais ornamentadas dos manuscritos monásticos constava apenas a fórmula consagrada incipit liber (aqui inicia o livro), imediatamente seguida do texto. Ou da iluminura, como é o caso da abertura do Evangelho de Lucas, nos Evangelhos de Lindisfarne, produzidos na Irlanda, séc. VII (detalhe, à esquerda).


Esta tradição ainda foi mantida pelos primeiros impressores na produção dos incunábulos, como se vê, à direita, no detalhe da página inicial de Pastorale, de Francesc Eiximenis, impresso por Pere Posa em Barcelona, 1495.

À medida que se aprimoravam as técnicas de impressão e se desenvolvia o negócio do livro, com maiores tiragens e mais ampla distribuição, alguns impressores, para evitar a sujeira na primeira página (os livros não possuíam capa e as encadernações ficavam a cargo do comprador), passaram a imprimir o início do texto no verso da primeira página, deixando o reto em branco. Não demorou para que aproveitassem este espaço para incluir o título da obra, mais tarde acrescentando uma ilustração, geralmente a marca do editor — conferindo assim à página um caráter publicitário. Aos poucos, passaram a indicar também o local e data da edição, o endereço do livreiro, dados que antes apareciam ao final do volume, no colofão, o qual foi por sua vez perdendo importância.

Com o tempo, esta página de abertura chegou a ser inteiramente preenchida, trazendo também, além dos títulos bastante extensos característicos da época, informações acerca da obra ou dados biográficos do autor.

À esquerda, rosto da edição de The World Encompassed, diário da circunavegação de Francis Drake (1628).

Os impressores, porém, atentos à apresentação gráfica da página, também introduziam vinhetas e ilustrações — graças à xilogravura, que tão bem se adequava, tecnicamente, à ornamentação do livro impresso, os blocos gravados podendo ser inseridos junto com os tipos na chapa tipográfica. A folha de rosto representa assim, além de precioso documento para o estudo da história do livro e da tipografia, um importante testemunho da arte produzida neste período.

No rosto desta edição de Amadis de Gaula (impressa em Sevilha por Cromberger, 1539) o estilo GÓTICO transparece tanto na tipografia quanto no enquadramento com motivos naturalistas e na representação de cenas e paisagens do cotidiano. | EDIÇÃO FAC-SIMILAR | (Bogotá: Biblioteca Nacional de Colombia)

Os motivos naturalistas também se encontram no rosto de Illustrations de Gaule et singularités de Troie, de Lemaire des Belges, impresso em Paris por Geffroy de Marnef em 1512, mas já com características HUMANISTAS trazidas da escola de Florença. A parte inferior da página registra o “privilégio do rei”, sem o qual nada se publicava em tempos de censura absolutista.
| EDIÇÃO FAC-SIMILAR | (Paris: BnF)

A mesma gravura e igual diagramação se veem no rosto de | LA LÉGENDE DES VÉNITIENS | também de Lemaire, e impressa pelo mesmo Marneff em c. 1512.

Já os humanistas de Veneza, ou de Verona, em busca das raízes clássicas, adotaram um estilo de forte influência romana. Os motivos de predileção eram elementos arquitetônicos, medalhões, vasos, estandartes e escudos, inspirados nos monumentos erguidos pelos antigos romanos aos seus heróis.

Rosto de uma tradução comentada dos Dez livros de arquitetura de Vitruvius por Daniele Barbaro, ilustrada por Palladio e editada por Francesco Marcolini em Veneza, 1556.

Rosto da edição de 1588 dos Essais de Montaigne, no mesmo estilo “arquitetônico” que se observa, por exemplo, no mobiliário da época (à direita, uma credência francesa estilo Henrique II).

Era comum, nesses primeiros tempos da imprensa, à medida que a nova técnica e os novos materiais se difundiam por toda a Europa, as imagens xilogravadas serem copiadas, imitadas, ou simplesmente reproduzidas — uma mesma gravura podendo ilustrar, de forma às vezes disparatada, vários livros distintos.

Assim, por exemplo, a moldura usada na portada da edição d'Os Lusíadas (ao lado), publicada em Portugal em 1572, foi fartamente reproduzida em vários países em edições de diferentes títulos.

Abaixo: Já a desta edição mexicana da Dialética de Aristóteles (Juan Pablos, 1554) retoma ponto por ponto, exceção feita do brasão real no alto e embaixo da página, aquela utilizada por Whitchurch, em 1549, para The Book of Common Prayer.

Nem todos os impressores humanistas, porém, aderiram à febre dos enquadramentos que tomavam conta das folhas de rosto Europa afora. Alguns, como Aldo Manúcio, optaram por uma aparência mais sóbria e despojada — conferindo-lhe, já no século XVI, o aspecto que hoje lhe conhecemos.

Rosto de Hyptenorotomachia Poliphili, de Francesco Colonna, publicado por Manúcio em 1499. | EDIÇÃO FAC-SIMILAR |

Seguiriam existindo, contudo, folhas de rosto bastante elaboradas, fossem elas tipográficas, ou ornamentadas. O final do século XVI traria, nesse sentido, uma importante inovação: a gravura em metal viria substituir a gravura em madeira, e a página de rosto ornamentada ficaria exclusivamente a cargo dos artistas, os quais naturalmente privilegiavam a ilustração em detrimento do texto. Assim é que o rosto, então chamado de frontispício, era não raro inteiramente ocupado pela imagem, com os dados da edição constando num rosto tipográfico que vinha na página seguinte.

Rosto da primeira edição (1637) do Discours de la Méthode de Descartes (que não traz o nome do autor), e fronstispício de L'Art de Plairede Vaumorière, ilustrado por Thomassin (1688).

Durante o período clássico eram presença constante, tanto nos frontispícios como nos rostos tipográficos, os florões e medalhões bem ao gosto do ROCOCÓ e BARROCO — como se vê nos exemplos ao lado. A ilustração da folha de rosto era muitas vezes a única do livro, e procurava então sintetizar todo o espírito da obra, não raro de forma alegórica. Estamos bem longe das gravuras coringa do início do livro impresso: a ilustração do rosto agora personaliza o volume.

No século XIX, os grandes avanços técnicos advindos durante a Revolução industrial descortinam para a produção de livros novas facilidades e inúmeras possibilidades. Enquanto a tipografia inova criando uma profusão de novos tipos — alguns bem fantasiosos, às vezes unidos em composições de gosto um tanto duvidoso — a ilustração ganha um novo impulso, e artistas ilustradores cumprem um papel essencial na edição de romances e coletâneas poéticas.

À esquerda, fronstispício ilustrado por Colin, no imponente estilo gótico-medievalista caro ao ROMANTISMO, para a edição (1824) dos poemas de “Clotilde de Surville”, pretensa poetisa do séc. XV (uma aparente farsa do editor). ¶ À direita: folha de rosto de Les Métamorphoses du Jour, de Grandville, ilustrada pelo próprio autor (1829).

Abaixo: Folha de rosto de Syr Ysambrace, novela anônima do séc. XV, na edição da Kelmscott Press de William Morris (1897). | EDIÇÃO FAC-SIMILAR | (University of Maryland) Refletindo a preocupação de Morris em resgatar dos primeiros incunábulos os princípios tradicionais de composição tipográfica, o frontispício se estende sobre uma página dupla e omite as informações de praxe da folha de rosto — introduz sem delongas a narrativa, precedida da expressão “here begynnes the romance...” que evoca o incipit medieval. A ilustração é de Edward Burne-Jones, enquanto que os ornamentos xilográficos foram desenhados pelo próprio Morris.

No século XX, a folha de rosto vai paulatinamente perdendo sua importância à medida que, desde o advento da brochura no século anterior, a capa de papel multicolorida vem substituir a encadernação e — parte mais visível do livro, passível de um imediato apelo ao leitor — passa a concentrar prioritariamente a atenção de designers e editores.

Rosto da edição de Les Vrilles de la Vigne, de Colette,
com xilogravura de Clément Serveau. Paris: J. Ferenczi & Fils, 1923.

Rosto de A Tale of Two Cities, de Dickens,
numa edição popular da Macmillan Company, 1930.

Nas modernas edições comerciais, a folha de rosto se mostra bastante despojada, quase sempre a uma cor (generosamente usada na capa e evitada no miolo por questões orçamentárias), e quase sempre apenas tipográfica, exceto por uma eventual vinheta ou logotipo.
Merece, contudo, o maior cuidado ao ser composta, mesmo que com poucos recursos: passados mais de cinco séculos desde o advento do livro impresso, continua sendo a portada — a porta de entrada que, no abrir do livro, introduz o leitor no universo da obra.

Rosto da edição em inglês de La Révolution du livre, de Robert Escarpit, onde se vê o título, o nome do autor, identificado como Professor da Faculdade de Artes e Ciências Humanas da Univ. de Bordeaux, e os dados dos responsáveis pela publicação: editora Harper (London, Toronto, Wellington, Sidney) e Unesco (Paris). Não constam a data (1966) nem o nome do tradutor (que não é mencionado, aliás, em nenhum lugar do livro!).

Para os livros da Paraula, sempre optei por reproduzir no rosto suas capas muito simples, a duas cores. Para esta edição (1994) de Casa Velha, novela de Machado de Assis, o orçamento permitiu o uso de uma segunda cor, o rosto ficando então idêntico à capa, exceto pelo papel: lá, vergê, aqui, pólen.

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INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS

· | Araújo, Emanuel |. A construção do livro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/INL, 1986.
· Febvre, Lucien; Martin, Henri-Jean. O aparecimento do livro. Trad. Fulvia Moretto e Guacira M. Machado. São Paulo: Ed. Unesp/Hucitec, 1992.
· Labarre, Albert. Histoire du livre. Paris: PUF, Col. Que sais-je? 3ª ed., 1979. [No Brasil: A história do livro. Trad. Maria Armanda Torres e Abreu. São Paulo: Cultrix, 1981.]
· McMurtrie, Douglas C. O livro. Trad. Maria Luísa Saavedra Machado. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 3ª ed., 1997.

© | Dorothée de Bruchard | 1999
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