Livros para crianças

Anatole France
(1844 - 1924)

Tradução de Claudio Giordano


Excerto de uma carta de Anatole France à Sra. D***.
Tradução originalmente publicada em O Artista, de Anatole France
(SP: Oficina do Livro / Imprensa Oficial, 2004).

Anne-Louis Girodet-Trioson,
Benoît Agnès Trioson vendo as figuras de um livro, 1797.

É notório que as crianças demonstram quase sempre profunda repugnância pela leitura de livros escritos para elas. Desde as primeiras páginas elas sentem que o autor se esforçou para entrar no reino delas, em lugar de as transportar para o dele e que, portanto, não encontrarão, levadas por ele, a novidade, o desconhecido de que está sedenta a alma humana em qualquer idade. Os pequenos são tomados da curiosidade que faz os sábios e os poetas. Querem que lhes seja revelado o universo, o universo místico. Os autores que se curvam diante deles e os mantêm na contemplação de sua própria infância aborrecem-nos cruelmente.

As obras que mais agradam os garotos e as meninas são as grandiosas, cheias de grandes criatividades, nas quais a boa disposição das partes forma um conjunto luminoso, e que são escritas num estilo forte e carregado de sentido.

Várias vezes levei jovenzinhos a lerem alguns cantos da Odisseia em boa tradução. Ficaram encantados. O Dom Quixote, ministrado em largas doses, é a leitura mais agradável em que se pode mergulhar uma alma de doze anos. Quanto a mim, desde que aprendi a ler, li o generoso livro de Cervantes, e tanto o amei e tanto o senti que é a essa leitura que devo grande parte da alegria que ainda hoje me inunda o espírito.

O melhor livro do mundo não fará sentido para a criança se nele as idéias se expressam de forma abstrata. A faculdade de abstração e de compreender a abstração se desenvolve tarde e de modo desigual nas pessoas.

Quando escrever para crianças não se preocupe em fazê-lo de modo especial. Pense muito bem e escreva muito bem. Que tudo tenha vida, seja grande, amplo e poderoso em sua história: eis o único segredo para agradar os leitores.

© tradução Claudio Giordano, 2004.
Direitos da tradução gentilmente cedidos para este site
Imagem: Escritório do Livro