Como tornar-se um colecionador

Jules Richard
(1825-1899)

Tradução de Dorothée de Bruchard


Comment on devient amateur ”, in L'Art de former une bibliothèque, um dos vários
livros voltados para a bibliofilia publicados, sob o pseudônimo Jules Richard, pelo
jornalista, escritor e bibliófilo francês Thomas Maillot, e que permanecem
ainda hoje uma referência na área. (Paris: Ed. Rouveyre et J. Blond, 1883).

Norman Rockwell, The Bookworm, 1926.

O aficionado, de início, é sempre inconsciente.

Ele compra para ler. Começa gostando do livro novo. É, para ele, uma inefável fruição ser o primeiro a introduzir o corta-papel num volume do qual possui a virgindade. Essa fantasia logo passa, porém, para o aficionado de raça. Ele rapidamente se cansa desses prazeres fáceis que qualquer um pode obter por 3,50 francos numa esquina de ruela. Ele precisa de mais. Quer ler seu autor favorito nas melhores condições para bem apreciá-lo. Quer tê-lo na primeira edição e, na medida do possível, numa bela encadernação de época. Se desse ouvidos a seu fanatismo de neófito, arranjaria um quarto com tapeçarias e móveis do período e, para ler Molière ou Racine, se vestiria como um marquês da corte de Louis XIV.

Quem sabe? O exemplar que possui talvez tenha sido tocado pelo mestre. Caso contenha uma dedicatória, não resta sombra de dúvida.

Ter um livro de Molière com uma linha escrita pelo próprio Molière na folha de guarda é um prazer que a ninguém é dado alcançar, pois são tão raros os autógrafos de Molière quanto são muitos os de Victor Hugo.

Os editores que produziram recentemente essas espécies de fac-similares, “restituições” — é assim que se chamam — de edições originais dos nossos grandes autores, especularam com essa mania. Reunir uma coleção das peças de Molière — edições originais — certamente custaria entre vinte e cinco e trinta mil francos (o Sr. Henri Meillac possui uma). O Sr. Jouaust, que é impressor e também editor, publicou plaquetes habilmente confeccionadas a fim de iludir os bibliômanos desinstruídos. A coleção custa cerca de cem francos e traz o maior prestígio ao hábil editor-impressor; mas um aficionado delicado jamais exibirá semelhantes imitações, por perfeitas que sejam, nas prateleiras de sua biblioteca — sempre irá preferir-lhes uma estimável edição não tão pretensiosa, mas de extração mais correta.

Eis então que chega, para o aficionado neófito, o momento em que ele se apaixona por um autor, por uma época, por um ramo da literatura ou da ciência. É o momento crítico, o instante preciso — em que nasce sua biblioteca.

Um amigo meu, homem muito letrado e funcionário de um importante serviço administrativo, foi sagrado bibliófilo por um Horácio bem bonito, de preço suave, que encontrou por acaso num alfarrábio do cais [do Sena]. Uma nota deste Horácio, que ensinava algo novo ao meu amigo, remetia-o para outra edição. Quis tê-la, e depois outra, acabou tendo seis, depois trinta, depois cem, depois mais ainda, incunábulos, elzevirs, edições inglesas, alemãs, que sei eu! Em suma, quando, depois de ter convenientemente usufruído de Horácio, quis se desfazer das cento e setenta e quatro edições que possuía, descobriu que existiam mais de setecentas e cinquenta!

Sabe-se quando se começa uma coleção, nunca se sabe quando ela termina — nisso reside o prazer.

Antes de prosseguir, e para ter a oportunidade de deduzir metodicamente os conselhos que quero dar ao neófito, vou logo dizendo que ele não deve jamais permitir a entrada em sua biblioteca de um profano, um beócio, uma dessas criaturas indiferentes e vulgares que Théophile Gautier depreciava pelo termo “boné de algodão”. [No original: bonnet de coton: referência à antiga touca de dormir, a expressão remete ao conforto e triste acomodação pequeno-burguesa.]

Depois de percorrer suas estantes com um olhar baço e entediado, ele infalivelmente dirá:

“Biblioteca bastante completa; feliz escolha de livros; está de parabéns!”

Pois saiba esse imenso imbecil, para começar: não existe biblioteca completa. O catálogo dos escritos sobre a história da França disponíveis na Biblioteca da rue Richelieu já soma quatorze volumes in-quarto; e não está concluído. Faltam, além disso, na dita Biblioteca, um bom número de obras muito conhecidas que ela poderia facilmente adquirir.

Além disso, uma escolha de livros nunca é absolutamente feliz, pois mesmo o mais rico dos bibliófilos nem sempre compra aquilo que quer, e sim, aquilo que pode.

E, por fim, que importam os parabéns desse senhor que não entende do assunto?

O bibliófilo, ele sim, deve entender. E para aprender a entender, precisa de ferramentas.

© tradução | Dorothée de Bruchard | 2001.
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Imagem: Escritório do Livro